O biscoito típico cuiabano tem sabor da esperança para 32 mulheres haitianas que migraram para Mato Grosso. Elas integram um grupo selecionado para o projeto-piloto “Mulheres do Haiti” que busca, através do trabalho coletivo, a produção desse biscoito tradicional como fonte de renda para estas mulheres.
O francisquito, biscoito típico cuiabano, tem sabor da esperança para 32 mulheres haitianas que migraram para Mato Grosso trazendo na bagagem o sonho de uma vida melhor. Elas integram um grupo selecionado para o projeto-piloto “Mulheres do Haiti” que busca, através do trabalho coletivo, a produção desse biscoito tradicional como fonte de renda para estas mulheres com idades entre 20 e 40 anos, desempregadas e que estão longe do país de origem.
A iniciativa é patrocinada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e conta com o apoio da agência QBrand, do Centro Universitário Univag, da Pastoral do Migrante, da Delegacia Sindical em Mato Grosso do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait-MT) e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mulheres do Haiti é um branding comunitário, utilizado em outros projetos da OIT. Trata-se de uma metodologia que adapta a criação e a gestão de marcas, incentivando o protagonismo e incluindo os pequenos produtores no processo.
“Na atual conjuntura do país, onde você não tem oferta de emprego, era preciso encontrar maneiras criativas de geração de renda. Então a gente pega o perfil dessas mulheres, que tem interesse em atividades produtivas especificas, e desenvolve algumas ações de apoio para desencadear um processo de produção. Trabalhando diante da perspectiva do grupo, as próprias mulheres escolheram a gastronomia e, em seguida o francisquito como a receita a ser trabalhada”, explica a psicóloga Bianca Vasquez, consultora da OIT em Mato Grosso.
Histórias de vida
Entre as mulheres selecionadas para esse projeto estão Yolene Jean (34) e Viliane Louis (27). Em histórias de vida, elas são o estrato das mulheres haitianas que apesar das dificuldades procuram manter o otimismo por dias melhores. Enquanto preparam a massa do francisquito na cozinha da Pastoral do Mirante em Cuiabá, elas contam suas trajetórias.
Natural de Porto Príncipe, Viliane chegou ao Brasil atraída pelos rumores de oportunidades em Cuiabá. “Dizem que [sic] Brasil está bom, que tem emprego. Quando a gente chega no [sic] Brasil, não tem emprego”, disse ela que desembarcou na capital de Mato Grosso com o filho, então com dois meses, e com o marido, também desempregado. Ela chegou a trabalhar por seis meses como serviços gerais até ser demitida. O marido atuou como pedreiro, mas também encontra-se desempregado. Além da falta de emprego, o casal, segundo ela, precisa arcar com despesas com alimentação e o aluguel de R$ 400.
Já Yolene foi uma das primeiras mulheres haitianas a chegar a Cuiabá, também movida pelo desejo de mudar de vida. Trabalhou com serviço de limpeza e afirma que a falta de domínio da língua portuguesa não foi impedimento para manter a comunicação com seus empregadores. Entretanto, com 16 meses parada, sem trabalho, admite o desânimo. “Vim sozinha e estou cansada. Fazer francisquito para vender e ganhar dinheiro é só o que penso”, destaca ela, uma das haitianas com o melhor domínio da língua portuguesa.
Botando a mão na massa
Com o projeto, as haitianas tiveram a oportunidade de aprender receitas da gastronomia cuiabana durante oficinas de culinária brasileira e regional oferecidas pelo Univag. Em abril, elas participaram dessa capacitação desenhada especificamente para aliar produção de alimentos, empreendedorismo, empoderamento e geração de renda.
Panificação e confeitaria, além de noções de sustentabilidade para o aproveitamento integral dos alimentos, ainda foram algumas técnicas utilizadas durante a qualificação. Nas mãos dessas mulheres, a receita tradicional de francisquito recebeu um toque haitiano: o amendoim, iguaria presente em práticos típicos do Haiti. Assim, o francisquito com amendoim tornou-se o principal produto da marca Mulheres do Haiti.
Aperfeiçoamento
A coordenadora do curso de Gastronomia do Univag, Adriene Alexandra Paiva, afirma que as oficinas representam um grande passo para estas mulheres, mas ainda é parte de um processo maior que almeja como resultado um francisquito em condições de ser colocado à venda no mercado e com todas as especificidades que produção de alimento exige.
“Os chefs do curso vão ajudá-las a padronizar a receita. A fim da qualificação os produtos terão ficha técnica, rotulagem e valor nutricional. Tudo isso para tornar o francisquito delas mais comercial e com a marca delas. Isso é importante para o caso de, trocando de profissionais, elas possam manter o padrão e a qualidade dos produtos”, explica.
Adriene revelou também que outra parte da parceria é com a estrutura. Segundo ela, para desenvolver um produto é preciso de uma cozinha que seja capaz de atender as normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anivsa). Por isso, o Univag entrará com o planejamento da cozinha.
“O francisquito cuiabano combinou muito bem com amendoim. Precisamos ajustar a quantidade de margarina na receita uma vez que o amendoim é um produto rico em gordura. Elas conseguiram casar o sabor haitiano com o sabor cuiabano”, elogia.
Migrantes
Os relatos dessas mulheres indicam que a maioria veio para o Brasil com os filhos, acompanhando os maridos, que foram atraídos pelas oportunidades geradas pela Copa do Mundo de 2014, que teve em Cuiabá uma das sedes do Mundial. “Os homens encontraram oportunidades na construção civil, na indústria, na agricultura e em outros setores, mas as mulheres encontraram e ainda encontram dificuldades para conseguir trabalho”, afirma a auditora fiscal do trabalho Marilete Mulinari Girardi, presidente da Delegacia Sindical em Mato Grosso do Sinait/MT e voluntária da Pastoral do Migrante.
A situação financeira de inúmeras famílias pode ser constatada na lotação da sede da Pastoral do Migrante, mantida pela Congregação dos padres Escalabrinianos da Igreja Católica. Homens, mulheres e crianças representam quase a metade das 100 vagas disponíveis no lugar. No dia da entrega de cestas básicas, apareceram bem mais pessoas do que o número cadastrado de pessoas. As cestas foram resultado de um repasse do Ministério Público Estadual em virtude do cumprimento de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
A coordenadora da Pastoral do Migrante, Eliana Aparecida Vitaliano, analisa que a situação das mulheres haitianas difere em relação a dos homens. “Culturalmente, elas tem um pouco mais de resistência em aprender o novo idioma. Aliado a isso, não tem com quem deixar os filhos pequenos para poder trabalhar. Assim como nós trabalhadoras brasileiras, elas têm que trabalhar e cuidar dos filhos. Uma terceira questão é que essas mulheres vieram pra cá, mas também possuem obrigações de ajudar familiares que ficaram no Haiti”, explica.
O crioulo e o francês são a língua oficial no Ha
iti. A maior parte da população fala o crioulo, enquanto o francês é o idioma para aquele que possui alguma escolarização. “O francês é aprendido na escola e muitas mulheres sequer terminaram o equivalente ao ensino fundamental. Como é que elas vão se comunicar com o patrão na execução de algum serviço?”, pergunta Eliana Vitaliano.
Lingua Portuguesa para Haitianas
Cerca de 20 mulheres haitianas também participam de um projeto-piloto sob a responsabilidade do Grupo de Estudos Linquísticos e Letramento (GELL) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). O curso de língua portuguesa para estrangeiros é gratuito e ocorre às quintas-feiras, das 14 às 17h, na sede da Pastoral do Migrante. As aulas, que começaram no fim do mês de junho, tem carga horária total de 60 horas.
“É um curso básico de língua portuguesa que tem como objetivo que essas mulheres tenham mais autonomia nas relações interpessoais e profissionais. A grande dificuldade é pela necessidade de urgência em aprender o idioma e pelo pouco tempo para esse aprendizado”, explica a professora doutoranda Renata Siqueira, supervisora do projeto pela UFMT. O curso “Língua Portuguesa para Haitanas” tem a coordenação da professora-doutora Cláudia Paes de Barros.
Renata explica que como se trata de um projeto-piloto, esse trabalho vislumbra adiante que essas mulheres desenvolvam a escrita da língua portuguesa. Enquanto isso, uma lista de espera contém nome de 70 mulheres que aguardam a oportunidade para outras turmas. “O que nos tocou nesse trabalho é o fato de que o aprendizado da língua portuguesa também é uma questão de sobrevivência”, conclui.
A marca
Segundo Nelson Andreatta, da agência QBrand, a agência desenvolveu o logotipo e o apresentou às trabalhadoras haitianas. Andreatta recorda que a aceitação foi unânime, pois a marca refletiu o desejo delas. O principal conceito foi união, valorizando elementos da bandeira haitiana e o sentimento de comunidade expressado pelas mulheres.
A necessidade de apoio à comunidade imigrante na Grande Cuiabá surgiu em 2013, quando 21 trabalhadores haitianos foram resgatados de condições análogas à escravidão. Com a crise econômica no Brasil, a maioria dos egressos do trabalho forçado retornaram ao Haiti. Em março de 2017, foram identificadas 78 mulheres haitianas em situação vulnerável na região.
Existe a expectativa de que outras migrantes identificadas na triagem para o projeto-piloto possam participar do projeto.
Fonte: SINAIT