Na Europa, muitos enfrentam a truculência das autoridades e a xenofobia de parte da população e da classe política
20.08.2017
Há alguns meses, recebi com alegria um telefonema da filha de um refugiado sírio, o primeiro cliente do projeto que coordeno há mais de um ano em Salônica, segunda maior cidade da Grécia. O projeto prepara gratuitamente solicitantes de asilo para as suas entrevistas com as autoridades gregas.
Ela me disse que sua família acabara de receber o status de refugiado em um país do norte europeu, para onde foram realocados no esquema de cotas criado pela União Europeia. O sistema visa aliviar a pressão migratória na Grécia e na Itália – os principais pontos de entrada de refugiados no continente.
Foi um grande alívio.
Aquela família precisou fugir da Síria porque tornou-se alvo do regime. O pai da jovem aceitou guardar em seu apartamento alguns pertences de um vizinho que ficaria um tempo fora da região. Poucos dias depois, soldados das tropas de Bashar Al-Assad invadiram sua casa e descobriram entre os objetos um gravador e microfones.
O vizinho era, provavelmente, um espião que suspeitava estar prestes a ser descoberto. Entretanto, não hesitou em colocar em risco a vida de uma família composta apenas por civis, que precisaram fugir para não ser mortos pelo governo.
A fuga
Eles chegaram à Europa em uma perigosa jornada de barco pelo Mar Mediterrâneo. Nos momentos mais tensos do trajeto, acharam que morreriam. Segundo a Organização Internacional de Migração, 5.143 pessoas perderam a vida ou desapareceram tentando chegar ao continente em 2016.
Desde 2015, mais de um milhão seguiram a mesma rota para fugir de conflitos e perseguição. Para parte deles, morrer em alto mar era uma opção melhor do que ficar em seus países de origem.
Entre os beneficiários do projeto que coordeno, estão sírios vítimas da guerra civil e diversos iraquianos que fogem da perseguição das milícias xiitas que dominam grande parcela daquele país. Há também muitos que escaparam de áreas controladas pelo Estado Islâmico, onde execuções brutais e mutilações como forma de punição são constantes. Ouço frequentemente testemunhos chocantes sobre as razões que levaram refugiados a deixarem seus países.
Mesmo com motivos válidos para buscarem proteção internacional, muitos desses refugiados não escapam da xenofobia de grupos da extrema-direita que os definem com “imigrantes econômicos”, uma “invasão de muçulmanos” ou “uma ameaça à civilização europeia”, como disse Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria. Naquele país, refugiados estão expostos a condições desumanas, incluindo a possibilidade de serem presos em contêineres na fronteira até que seus casos sejam analisados.
Orbán não está sozinho em sua cruzada nacionalista. Ainda que a Europa tenha recebido apenas uma fração do número de refugiados que o Líbano (onde um a cada seis habitantes era refugiado em 2016) e a Turquia (com 2,9 milhões ) receberam, a retórica da ameaça externa se propaga.
Robert Fico, premier da Eslováquia, recusou-se a receber refugiados muçulmanos em seu país porque eles iriam “mudar as características e a cultura” local. Polônia e República Tcheca também não querem aceitar as cotas impostas pela Comissão Europeia. A UE abriu uma ação legal contra esses quatro países, todos liderados por governos conservadores.
Na Grécia, há máfias aliciando menores refugiados para prostituição, milhares de pessoas ainda vivem em campos inadequados e diversas pessoas que receberam o status de refugiado do governo não possuem suporte oficial das autoridades – alguns sequer têm onde morar.
Em ilhas como Chios e Lesbos, hotspotsforam estabelecidos para analisar os pedidos de asilo de quem chegar pelo Mar Egeu e para impedir que essas pessoas possam chegar à Grécia continental. A espera pela conclusão do processo leva meses, período no qual os solicitantes de asilo vivem em abrigos com condições inadequadas.
Impactos
O impacto psicológico é grande: os casos de tentativas de suicídio e de automutilação são comuns. Protestos são reprimidos com intensa violência e abuso policial. Em diversos casos, o processo de asilo e as entrevistas têm seguido procedimentos ilegais e abusivos. Contudo, pouco se discute sobre isso na mídia.
Construiu-se um clima propício à propagação da retórica de que refugiados são “farsantes”, ainda que muitos dos que espalham esse “argumento” nunca tenham sequer conversado com um solicitante de asilo. Esse discurso tem consequências reais nas vidas das pessoas, uma vez que ele se infiltra nas instituições responsáveis por analisar pedidos de asilo. Por isso, é preciso preparar muito bem os refugiados para suas entrevistas.
No direito internacional para refugiados, que lida com casos de indivíduos muitas vezes forçados a fugir apenas com a roupa do corpo e sem qualquer documento de identificação, é comum dizer que a evidência mais importante é a história do solicitante de asilo. Logo, ela precisa ser apresentada da forma mais clara, objetiva e organizada possível para convencer as autoridades. Estas o colocarão sob dúvida frequentemente.
Os refugiados de Idomeni
Combater essa retórica nociva a pessoas buscando proteção internacional é importante. Esse é um dos motivos pelos quais escrevi o livro Refugiados de Idomeni – o Retrato de um Mundo em Conflito, que narra como a crise dos refugiados afetou um pequeno vilarejo no norte da Grécia, na fronteira com a Antiga República Iugoslava da Macedônia.
Idomeni ganhou fama internacional ao se transformar em um abrigo esquálido para cerca de 14 mil indivíduos, que ficaram presos por meses após o fechamento das fronteiras do norte europeu para refugiados vindos da Grécia a partir de março de 2016.
Milhares de pessoas viviam em barracas sob chuva, lama, ventos e temperaturas negativas na esperança de que as fronteiras voltassem a se abrir. Aquele acampamento informal virou o epicentro de uma emergência global. O local foi comparado a campos de concentração nazistas pelo próprio ministro do Interior grego, Panagiotis Kouroublis.
Entre outubro de 2015 e maio de 2016, fiquei entre Salônica e Idomeni, um local definido por um refugiado como “o inferno”. Conduzi uma pesquisa de campo sobre a mobilização de civis para ajudar refugiados na região. Parte daquela pesquisa deu origem ao livro, que narra um pedaço da crise migratória que atingiu a Europa pelos olhos dos refugiados, de atores humanitários e de moradores de áreas afetadas.
Fonte:huffpostbrasil.com