Em sua recente edição, a REMHU apresenta o dossiê “A Sociedade Civil no Contexto da Mobilidade Humana”, focado na atuação do terceiro setor diretamente com pessoas migrantes e refugiadas. O editor-chefe da revista, Roberto Marinucci, afirma que neste contexto existe a “paradoxal utilização do léxico dos direitos humanos para demonizar práticas solidárias que visam promover a dignidade dos sujeitos envolvidos”. Segundo ele, há casos em que ocorre o contrário, e o paradigma dos direitos é aplicado de forma seletiva, unicamente a um determinado grupo de pessoas, como os nacionais.
As regiões com grande fluxo migratório, como o norte do México e regiões do mar Mediterrâneo, concentram grande parte das atuações diretas de instituições que trabalham no âmbito das migrações e inspiram reflexões sobre a defesa de direitos e humanitarismo devido às situações de emergência humanitária recorrentes. No artigo “Las organizaciones de la sociedad civil en fronteras de alta migración. Entre el humanitarismo y la defensa de derechos” de María Carrascosa e Joan Lacomba, presente no dossiê da REMHU nº 58, é possível entender melhor essa questão.
O texto é baseado nos resultados do trabalho de campo realizado na cidade fronteiriça de Tijuana (México) e nas cidades autônomas de Ceuta e Melilla (Espanha). A pesquisa mostra os níveis de desempenho das organizações da sociedade civil em relação aos migrantes em trânsito, deportados e refugiados, que atuam entre a ajuda humanitária e a defesa dos direitos (advocacy), embora as políticas de controle de fluxo limitem cada vez mais a ação das organizações, especialmente aquelas com posições políticas mais críticas.
Dessa forma, o trabalho explora os processos de resiliência por meio dos quais essas organizações tentam se adaptar ao contexto político altamente mutável, enquanto a capacidade de influenciá-lo é cada vez mais limitada. O texto pode ser lido na íntegra aqui.
Cidades Santuário
Além do dossiê, na seção “artigos” destaca-se o trabalho “Cidades-Santuário e o Direito à cidade: repensando pertencimento a partir das cidades”, do vice coordenador do Centro de Proteção a Refugiados e Imigrantes (CEPRI/Fundação Casa de Rui Barbosa), André Zuzarte, que desdobra sua tese de doutorado sobre a relação entre a “crise do refúgio” e a “crise das cidades”. O autor argumenta que o espaço urbano acarreta possibilidades de construção de formas alternativas de cidadania para os migrantes e refugiados(as) que, por vezes, desafiam os processos de exclusão que lhes são impostos em nível nacional.
O artigo deixa claro que os movimentos migratórios sempre fizeram parte da história das cidades, da antiguidade à idade moderna. Pessoas migrantes estabeleceram raízes no meio urbano em que, com frequência, se replicaram e aprofundaram as políticas e práticas estatais de exclusão. Dessa maneira, a discriminação e criminalização de migrantes passa a ocorrer não somente nas fronteiras nacionais externas, mas também nas fronteiras internas – locais de trabalho, escolas, moradias.
Zuzarte afirma que a assim chamada “crise dos refugiados” de 2015, na área do Mediterrâneo, impulsionou o aumento não apenas do controle das fronteiras externas – visando reduzir os ingressos, mas também de fronteiras físicas e simbólicas em espaços internos e locais – visando, neste caso, gerar dinâmicas de fiscalização e exclusão no cotidiano das pessoas migrantes. Neste caso, as cidades traduzem as políticas e medidas de controle e policiamento dos Estados em contexto urbano. Essas intervenções se dão no acesso a serviços sociais locais básicos, como saúde, moradia e educação.
Ainda assim, o artigo defende que, ao mesmo tempo em que as cidades abrigam essas práticas que segregam e excluem esses indivíduos da participação e pertencimento plenos na comunidade, trazem também possibilidades disruptivas que apontam para a construção de uma vida urbana mais aberta. Se baseando na teoria de Lefebvre (1968) em Le Droit à Ville (Direito à cidade), Zuzarte acredita que nesse contexto as pessoas podem se apropriar, participar e transformar os espaços nos quais estão inseridas, envolvendo a capacidade dos habitantes de controlarem os mecanismos de gestão do espaço urbano.
Nesse sentido, as “cidades-santuário” vão na contramão do processo de criminalização da migração, resistindo a políticas nacionais excludentes e oferecendo proteção a pessoas refugiadas e migrantes com status irregular. Um exemplo de cidade que implementa ações voltadas à essa transformação é São Francisco, que introduziu políticas municipais na década de 1980 que a fizeram uma das primeiras “cidades santuário” nos Estados Unidos, aprovando regulamentos que proibiram o uso de fundos e recursos locais para a colaboração com políticas securitárias federais. Políticas análogas ocorrem em cidades da Europa e da América Latina.
O artigo de André Zuzarte, portanto, sinaliza a possibilidade concreta de estabelecer em nível local dinâmicas de construção do espaço urbano que desafiam as políticas nacionais securitárias e discriminatórias. As cidades santuário – como sustenta o autor – “não representam apenas espaços de resistência, mas de materialização de formas alternativas de pertencimento que se pautam não pela posse de um status formal, mas pela presença no espaço urbano – aproximando-se da noção lefebvriana de direito à cidade”.
Nessa perspectiva, o espaço urbano se torna também um lugar privilegiado de intervenção por parte da própria Sociedade Civil – tema do Dossiê da REMHU, n. 58 – chamada a incidir na construção de novas formas de cidadania e na proteção e promoção dos direitos de todas as pessoas residentes, independentemente de sua nacionalidade.
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