A presença de crianças em contextos migratórios chama atenção para diversos aspectos da vivência nas sociedades de destino, sendo um deles a inserção nos ambientes escolares.
Pensar a escola enquanto um espaço sociocultural é pensá-la sob a perspectiva de uma instituição dinâmica, heterogênea, que recebe indivíduos de diferentes classes sociais, etnias, culturas, regionalidades, gêneros (Azevedo e Barreto, 2020), entre outras diversidades, e, a partir disso, pensar em cada sujeito.
Além disso, na escola é preciso garantir que o processo de ensino-aprendizagem possa se desenvolver por meio da troca e do compartilhamento de culturas e de saberes. Dessa forma, a instituição pode se tornar um espaço para o exercício da interculturalidade, oferecendo oportunidades de intercâmbios entre as crianças migrantes e as nacionais para conhecer as expressões culturais de cada uma e permitindo que, no processo educacional, se coloque em perspectiva a presença dos “outros”, valorizando a diversidade como uma condição natural e necessária à humanidade.
No Editorial da Revista REMHU n. 69, cujo Dossiê trata do tema “educação, migração e direitos humanos”, Marinucci (2023) argumenta sobre a importância de uma abordagem interpretativa das migrações como fenômeno estrutural das sociedades, para que haja políticas educacionais voltadas para a interculturalidade, com reformulação de conteúdos curriculares e processos avaliativos com vistas a superar o etnocentrismo e serem mais inclusivas para as pessoas migrantes.
Olhando para o contexto brasileiro, a legislação determina que estrangeiros têm direito ao acesso à educação da mesma forma que as crianças nacionais. Entretanto, sabe-se que as pessoas migrantes podem enfrentar diferentes barreiras no acesso às escolas, bem como podem vivenciar um processo de inserção muitas vezes permeado por discriminação. Nesse sentido, é preciso garantir que as crianças migrantes sejam incluídas no processo educativo e, além de terem acesso à matrícula, estejam de fato inseridas no contexto escolar e respeitadas em suas singularidades.
Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Alfabetização, o CSEM conversou com a Fabíola Ribeiro de Souza, Doutora em Psicologia Escolar do Desenvolvimento, linguista, pedagoga e professora de inglês na Secretaria de Educação do Distrito Federal há mais de trinta anos. Atualmente, a professora desenvolve o projeto Bem-vindos ao DF – Português Língua de acolhimento e desenvolvimento humano, no Centro de Línguas do Guará, um projeto fruto de parceria entre a Secretaria de Educação do DF e a Universidade de Brasília.
Na reflexão sobre como as escolas podem ser locais de acolhimento para crianças migrantes, a Prof. Dra. Fabíola Ribeiro de Souza destaca alguns aspectos. O primeiro se refere à formação dos profissionais de educação, uma vez que deve abranger não apenas os professores, que devem ter uma preparação que os ajude a acolher as crianças migrantes e a enxergar a oportunidade que é ter alunos de outras culturas e outros países, mas também a equipe gestora das escolas para que tenham informações corretas e atualizadas sobre como atender essas famílias sem gerar dificuldades adicionais exigindo documentos do país de origem, por exemplo. A professora também ressalta a importância da equipe gestora identificar os alunos migrantes e poder adaptar o cardápio do lanche escolar respeitando questões culturais e religiosas, quando se trata de estudantes muçulmanos, por exemplo.
Um segundo aspecto a se destacar diz respeito ao papel que a escola tem de propiciar a imersão na cultura para as crianças migrantes, sem desconsiderar as identidades culturais dos alunos durante o processo de alfabetização. Nesse sentido, é importante que as escolas também possibilitem “o desenvolvimento das crianças de forma que elas possam se tornar bilíngues”, oportunizando tanto a aprendizagem do português, quanto espaços para que possam se expressar na língua nativa.
Outro aspecto que contribui para que a escola seja um lugar de acolhimento para as crianças migrantes em fase de alfabetização diz respeito à importância dessas crianças estarem em um ambiente com muitas atividades, altamente ilustradas. Além disso, é importante disponibilizar nesses espaços ferramentas de tradução, tais como informativos no idioma materno do aluno e em português, além de permitir que tenham acesso a tradutores eletrônicos em tablets ou celulares em alguns momentos. Tudo isso contribui para que a escola tenha estratégias para simbolizar as mensagens que precisam ser comunicadas e para facilitar o entendimento das crianças sobre o ambiente em que estão.
O desenvolvimento de uma pedagogia mais inclusiva, baseada nos interesses das crianças para o desenvolvimento da escrita e da leitura e na valorização das identidades e culturas dos alunos migrantes é fundamental, consistindo em uma oportunidade para se trabalhar diferentes temas e conteúdos a partir da presença de uma criança migrante em sala de aula, pois tudo isso molda o ambiente em que a alfabetização vai sendo desenvolvida, como relata a professora Fabíola. Desenvolver projetos que valorizem a cultura, aspectos positivos do país de origem, como as comidas, entre outros, fazem parte de um trabalho pedagógico que, inclusive, pode evitar e até mesmo sensibilizar os estudantes quando há casos de bullying e xenofobia.
Para este público específico das crianças migrantes, os sentimentos de pertencimento e a socialização no âmbito escolar são fundamentais no processo de aprendizagem. Nesse sentido, é importante que elas estejam inseridas nas séries compatíveis com sua idade e que não sejam reprovadas por ainda não ter o domínio da língua portuguesa. Sobre isso, a professora comenta que é muito importante a escola ter uma compreensão da aprendizagem como algo cíclico e progressivo, para além de uma lógica baseada em resultados obtidos em provas, valorizando o que foi aprendido e dando oportunidade de suprir as lacunas nos próximos ciclos.
A Prof. Fabíola aponta como um desafio a ser superado a falta de informações sobre os direitos e formas de acesso das crianças migrantes nas escolas, sendo este assunto algo a ser difundido nos meios de comunicação em massa para que possa chegar em diferentes locais e pessoas. Ela encerra afirmando que em uma escola acolhedora para crianças migrantes em processo de alfabetização é preciso “amar, amar no sentido de ação, não do sentimento, mas do agir. Tratar a criança com respeito, se colocando no lugar daquela pessoa, que o futuro do Brasil, é o futuro do planeta”.
Fontes:
Marinucci, Roberto. Editorial: A educação no contexto da mobilidade internacional e das políticas migratórias. In: REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 31, n. 69, dez. 2023, p. 7-14. Disponível em: https://www.scielo.br/j/remhu/a/fRWtD8DkzZDbZ5PnXNqXHsx/?format=pdf&lang=pt
Azevedo, Ana Paula Zaikievicz; Barreto, Ketlin Petini. A migração infantil e o acesso à educação básica de crianças migrantes em solo brasileiro. In: TraHs Números especiales N°6 | 2020 : Desafios migratórios contemporâneos. Disponível em: https://www.unilim.fr/trahs/2368&file=1/