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Projeto que une gastronomia e cultura destaca o respeito aos imigrantes

 O cozinheiro Khairul e um grupo de imigrantes vindos de 14 países ocupam espaço, na 206 Norte, com o MigrArte, evento que, por meio da gastronomia, música e arte, pede por menos muros e mais pontes

O cozinheiro Khairul e um grupo de imigrantes vindos de 14 países ocupam espaço, na 206 Norte, com o MigrArte, evento que, por meio da gastronomia, música e arte, pede por menos muros e mais pontes

Pedro Grigori – Especial para o Correio

Com cabelos bem penteados para a esquerda e um marcante sorriso reluzente, Khairul Islam, de 30 anos, parece bem à vontade, mesmo estando a mais de 15 mil quilômetros de onde nasceu. Saído de Bangladesh, em 2013, por conta da superpopulção do país, o cozinheiro Khairul rodou a América Latina em busca de um lugar ideal para morar. “Nasci na cidade de Sylhet, lá nós vivemos em paz e ajudamos uns aos outros. Mas meu país tem muita gente para pouco espaço e trabalho. Cruzamos fronteiras em busca de emprego para ajudar os que ficaram para trás”, completa. Amanhã, Khairul e um grupo de imigrantes vindos de 14 países ocupam espaço, na 206 Norte, com o MigrArte, evento que, por meio da gastronomia, música e arte, pede por menos muros e mais pontes.

“Queremos tornar nossa cultura conhecida, como Japão e Itália são”, argumenta Khairul. Bangladesh é um país novo, conseguiu a independência do Paquistão em 1971, e hoje enfrenta um problema de superpopulação. É o sétimo mais populoso do mundo, com 163 milhões de pessoas, mas tem um território semelhante ao do Amapá, mesmo abrigando uma nação 205 vezes maior. No MigrArte, o bengalês escolheu seis pratos que representam a gastronomia da terra natal. Para a reportagem, preparou um doce, a gulab jamun, e um salgado, a somosa.

O primeiro parece um bolinho de chuva, que é deixado marinando por 24 horas em uma calda doce feita com sêmola de trigo. “Em Bangladesh não pode ter um casamento ou festa de aniversário sem gulab jamun, é um doce usado para quando você deseja algo de bom ao semelhante. Se alguém se muda para a sua rua, você dá uma bandeja em sinal de boas-vindas”, afirma. Já o salgado é a versão asiática do nosso pastel, mas tem um formato triangular e uma maior quantidade de recheio, que pode ser de peixe, frutos do mar ou legumes, como o preparado por Khairul. Mas é o tempero forte o que mais chama atenção no prato.

O bengalês chegou ao Brasil sem saber falar uma palavra em português, e conta que o apoio dos conterrâneos que tornou a vida possível. “Em Brasília estamos perto das embaixadas, o que nos ajuda muito. Tem mais ou menos 200 pessoas de Bangladesh aqui, conhecemos quase todos, e vamos ajudando uns aos outros”, afirma. O encontro com o Correio ocorreu na pastelaria de Azis Ahmed, 45 anos, a Ki Sabor Ceilândia. No local, Khairul recebeu espaço para produzir os quitutes que venderá na feira. “Ele me abrigou aqui, e moro a 500 metros. Os bengaleses costumam trabalhar vendendo comida em Brasília, as pessoas gostam muito do nosso tempero”, afirma.

Azis e Joynul Haque, 33 anos, que divide a moradia com Khairul são mais tímidos, e falam em bengali para que o amigo possa repetir em português. “Acabamos nos empenhando muito nessa questão de ajudar uns aos outros. Queremos mostrar para o Brasil a nossa cultura”, explica.

Migração

Além de Bangladesh, países como Síria, Congo, Paquistão, Afeganistão, Gana e Colômbia terão seus respectivos espaços no evento. Na quarta edição, Marina Miranda, coordenadora de produção, afirma que se trata de uma luta para que o direito de migrar seja respeitado. “Ainda existem pessoas que não entendem o que os imigrantes passam. Nossa ideia é apresentá-los por meio da arte e gastronomia. Porque você pode dizer que não gosta de um paquistanês, por tudo que ouve falar na televisão, mas não pode dizer a mesma coisa sobre a comida de lá. Então vamos usá-la para tirar essas opiniões do senso comum, esse preconceito”, explica a brasileira.

Segundo Marina, os colaboradores do evento não pagam para a organização, mas fazem doações para o fundo de apoio aos refugiados. “Muitos deles vivem em condições muito precárias, alguns estão até pegando panelas emprestadas para cozinhar os alimentos, mas todos têm muito amor pelo que estão fazendo e mostrando a nós, brasileiros”, garante.

“Soy América”

Um dos momentos mais aguardados do evento é o show da cantora venezuelana Damelis Castillo, 56 anos. Ela se classifica como uma andina caribenha, canta sobre os rios da América Latina e o movimento migratório. Ao receber a reportagem em casa, se mostra animada, sempre cantando. “Soy el norte, soy el sur. Soy América”, cantarola ao subir as escadas do prédio no Lucio Costa, em frente ao Guará. Na sala, se senta em uma rede armada onde fica durante toda a entrevista. “Cheguei a Brasília pela primeira vez nos anos 1980, para estudar música na UnB. Queria ser uma compositora, mas não conseguia encontrar nas bibliotecas o que eu queria para as minhas letras. Por isso, deixei os estudos para beber da água do povo indígena, que é de onde vim”, relembra.

A venezuelana deixou o DF nos anos 1990 para concluir sua missão, e só retornou no ano passado. “Atuei como diretora de uma escola de música às margens dos rios amazônicos, conheci a minha história. Conheci mais de 600 povos indígenas diferentes. Eu queria que não existissem fronteiras”, argumenta.

Sobre a situação atual da Venezuela, é cuidadosa com as palavras. “Se eu fosse uma pessoa que só pensa por mim, seria inimiga de Nicolás Maduro (atual presidente da Venezuela). Pela conversão de moeda, era para eu me aposentar com cerca de R$ 9 mil mensais, mas devido a tudo que aconteceu na economia, hoje não consigo liberar nem R$ 600. Maduro é besta, mas não tem culpa total sobre o que está acontecendo. Espero que não ocorra uma guerra civil, não quero ver familiares e amigos lutando e morrendo pelas mãos uns dos outros”, conta.

Damelis se considera uma apaixonada pela Brasília além dos cartões postais. “Tenho muita fé nos jovens daqui, que lutam para não apenas viver dentro de um quadrado”, conta. Sobre o MigrArte, ela destaca também a importância de servir de ponte para os novos imigrantes.“Muitos ainda precisam aprender a dominar o português e conhecer as leis do Brasil, porque podemos manter nossas religiões e tradições, como uma rede armada no meio sala, mas sabemos que estamos em outro país”, afirma.

Antes de usar “el cuatro” (um instrumento venezuelano semelhante ao cavaquinho) para tocar uma das canções que apresentará no evento, a venezuelana comemora fazer parte do evento. “Nós vamos nos juntar para mostrar o que sabemos fazer com as nossas mãos e corações. Queremos fazer as pessoas verem como é fácil respeitar e valorizar a diversidade”, afirma.

Enquanto afina o instrumento, ela constata: “Independentemente do país onde nascemos, temos muitas coisas em comum, mais do que imaginamos. Mas se você tem um bloqueio, constrói um muro, se não se atreve a descobrir o que há por trás do outro, você nunca vai encontrar essas coincidências”.

Luz, câmera, talheres

A partir de quarta-feira da semana que
vem até o domingo seguinte, o Festival Slow Filme Festival abraça a mesma temática em evento no Cine Pireneus, em Pirenópolis. A histórica cidade, a 140km do Distrito Federal, recebe exibições de 20 filmes (entre curtas, médias e longas-metragens). Haverá também palestras com especialistas, realizadores e chefs calcados pela temática urgente e necessária: cozinha de refugiados e a importância das tradições à mesa para a formação identitária. Um dos nomes confirmados é o de Maria Conceição Oliveira, integrante do projeto Comida de (I)migrante, voltado para conexões entre refugiados e imigrantes de São Paulo. Um dos filmes, Café — Um dedo de prosa, foi um dos indicados pelo MinC para representar o Brasil no Oscar.

SERVIÇO

MigrArte Interdependente

Quando: 7 de setembro, das 15h às 22h
Onde: 206 norte, Bloco D
Entrada gratuita
Compra antecipada de bilhetes para gastos no evento: http://www.juntos.com.vc/pt/SaboresDoMundo

Fonte: Correio Braziliense

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