Cresce nº de universidades brasileiras que acolhem refugiados

 O congolense Santiago (nome fictício), de 25 anos, teve de abandonar a universidade de Economia às pressas e fugir de seu país. A família sofria ameaças de morte em meio ao conflito político na região e a vida universitária se tornara insustentável. 

Luiz Fernando Toledo, O Estado de S.Paulo

SÃO PAULO – O congolense Santiago (nome fictício), de 25 anos, teve de abandonar a universidade de Economia às pressas e fugir de seu país. A família sofria ameaças de morte em meio ao conflito político na região e a vida universitária se tornara insustentável. Sem alternativas, buscou seguir o exemplo do irmão, que havia ido estudar no Canadá. Pesquisando, descobriu a possibilidade de vir ao Brasil e adquirir o visto de refugiado. Decolou no dia 25 de janeiro de 2015, em Roraima.

“Eu tinha um amigo que me ajudou muito lá até que eu aprendesse o português. Eu precisava me manter estudando e não poderia desistir”, disse. O périplo se estendeu por Brasília, São Paulo – onde trabalhou por nove meses – e, finalmente, Rio Grande do Sul. Foi lá que ele descobriu que a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) tinha um programa de reserva de vagas para refugiados. E assim, finalmente, garantiu sua matrícula no curso de Economia, que começou em agosto.

Histórias como a de Santiago têm se multiplicado no Brasil nos últimos anos. O número de universidades que oferecem algum tipo de auxílio aos refugiados cresce a cada ano. Ao menos 17 instituições do País, públicas e privadas, já integram um grupo liderado pela Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), com ações que vão de benefícios no vestibular, como cotas, a auxílio financeiro, aulas de português e ajuda com documentações.

Apenas neste ano houve três novas adesões: Universidade Federal de Roraima (UFRR), Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Outras três, segundo a Acnur, poderão aderir ao convênio em breve – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade de Brasília (UnB).

Um relatório internacional da ONU obtido com exclusividade pelo Estado e que será divulgado nesta segunda-feira, 11, aponta uma situação dramática na educação das crianças e adolescentes refugiadas. Só 61% destes estrangeiros têm acesso ao anos iniciais do ensino fundamental (equivalente brasileiro à chamada primary school), ante 91% para outras crianças. Em países menos desenvolvidos, a taxa cai para 50%. E a quantidade que consegue avançar e chegar até os anos finais e o ensino médio é ainda menor: só 23% chegam a esta etapa, em relação a uma média global de 84%. Já nos países mais pobres, só 9% conseguem chegar ao ensino médio. Já no ensino superior, o índice é semelhante ao de 2016: só 1% dos refugiados alcançam esta etapa do ensino.

As instituições de ensino superior brasileiras integram a Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), fórum criado pela Acnur para promover a educação, pesquisa e extensão acadêmica voltada à população de refúgio. A CSVM teve início em 2003 e, desde então, firma acordos de cooperação com instituições interessadas.

A UFSM, onde Santiago se matriculou, prevê em seu edital uma reserva de 5% de vagas suplementares em cada um dos cursos voltadas somente para refugiados e migrantes em situação de vulnerabilidade. Além da matrícula, os estudantes têm acesso à Casa do Estudante (república estudantil) e alimentação gratuita. Só neste primeiro ano da iniciativa, ao menos 50 candidatos tentam ingresso na instituição por esta modalidade. “No caso deles não é solicitado o vestibular, mas sim o comprovante de refúgio ou, no caso do migrante, da situação socioeconômica”, explica a coordenadora do programa, Giuliana Redin. Os candidatos também precisam comprovar, de alguma forma, que concluíram o ensino médio. Além disso, há a possibilidade de solicitar reconhecimento de disciplinas já cursadas no exterior. “Muitos já cursavam em seu país de origem, mas precisam retomar os estudos fora”, explica Giuliana.

A Universidade Federal de São Carlos (UFsCar) tem, hoje, 13 alunos em situação de refúgio, além de outros 5 ex-estudantes já formados. A instituição reserva uma vaga por curso para ser disputada somente por eles, com a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – portanto é necessário ter fluência no Português. “O que é comum, porque muitos já estão no Brasil há algum tempo”, diz a coordenadora interna da Coordenadoria de Ingresso na Graduação da UfsCar, Tainá Veloso Justo.

Educação básica

O investimento em educação em regiões de conflito, segundo o relatório da ONU, não passa de 2% do orçamento do País, muito abaixo do mínimo recomendável de 5%. Metade dos 22,5 milhões de refugiados no mundo é criança. “Para crianças e adolescentes que foram forçados a fugir de suas casas, a educação promove estabilidade e segurança quando tudo mais em suas vidas parece ter desmoronado”, diz o texto do documento. Outro problema é que a situação de refugiado é, geralmente, mais longa do que a própria vida escolar: ao menos 66% dessas crianças que vivem hoje nessa condição vieram de países com conflitos que se prolongam por mais de 20 anos.

‘Quase desisti’, conta síria que se formou em Arquitetura neste ano

“Eu me senti responsável para mostrar para o mundo inteiro e para mim mesma que eu era merecedora dessa vaga, que eu era capaz de estar nesse curso. Queria mostrar que os refugiados sírios podem realizar seus sonhos fora da Síria. Queria mostrar que estamos aqui lutando, trabalhando e estudando. Somos filhos da Síria. Onde quer que estejamos, somos vencedores.” Essas foram as palavras do discurso de formatura da arquiteta síria Lucia Loxca, de 26 anos, que se graduou em agosto pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Sem falar nada de português, Lucia e o marido chegaram ao Brasil em abril de 2013 com toda a família. Ela estava no segundo ano do curso em Alepo quando a universidade foi bombardeada. A ONU estima que os confrontos no país árabe, que já duram três anos, tenham deixado mais de 100 mil mortos.

Lucia fugiu para o Kuwait em busca de segurança e, em seguida, para o Brasil, após resolução do Ministério da Justiça facilitar a entrada de sírios como refugiados de guerra.“No começo era tudo muito confuso, eu não falava uma palavra em português. Colegas tinham de traduzir algumas partes das aulas para o inglês, mas nem sempre dava para anotar tudo. Quase desisti”, lembra.

O processo de entrada da estudante foi inédito e precisou da aprovação de uma norma específica na universidade, que até designou um docente para ser tutor da aluna. Paralelamente à graduação, ela foi matriculada no curso de português da universidade.

Sonho

A jovem já trabalha em um escritório de arquitetura e faz planos para o futuro. Ela quer tornar realidade seu trabalho final de curso – o projeto arquitetônico de um centro de acolhimento para refugiados.

“As pessoas não podem chegar e ficar completamente perdidas. É preciso ter um apoio para reconstruir a própria vida”, afirma.

A jovem também divide
a atenção com a música. Montou, com o marido, uma banda de música árabe, a Alma Síria, que já se apresentou em festivais de Curitiba. “Queremos divulgar a nossa cultura”, diz ela.

Fonte: O Estadão

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