A violência no Brasil e o capítulo dos venezuelanos na fronteira

A gramática da violência por aqui é a regra, apesar do sempre louvável espírito altruísta de muitos. O caso de Roraima se insere nessa lógica

Guilherme Mansur Dias

As cenas lamentáveis da expulsão de venezuelanos por brasileiros ao som do hino nacional em Pacaraima revelam as vísceras de nossa violência e expõem ao mundo um projeto falido de nação. Chegamos a 2018 ostentando índices os mais escandalosos quando o assunto é violência: o país contempla o maior número absoluto de assassinatos no mundo; é o que mais mata travestis, transexuais e defensores de direitos humanos; está entre os lugares com maior número de homicídios femininos; e tem a terceira maior população carcerária do planeta – dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Esses dados do presente fazem jus à extensa história de extermínio de povos indígenas e deslocamento forçado de africanos, escravizados nas lavouras de diferentes regiões do país sobre o veio do autoritarismo e da arbitrariedade. Tais fenômenos, que certamente possuem causas complexas e variadas, dão a tônica da constatação evidente de que não fomos e não estamos sendo capazes de lidar com tal passado e com o quadro de violência por ele legado. Ao contrário, a situação parece apenas piorar, e a passos largos.

As análises sobre o que ocorreu em Pacaraima já foram suficientemente precisas para apontar os vilões da vez: uma mídia irresponsável e parcial, que dissemina o ódio e evita uma reflexão ponderada sobre a chegada de imigrantes ao país; um poder público omisso e ineficiente, que não consegue erigir uma estrutura mínima de abrigamento e assistência às pessoas que saem da Venezuela em busca de um lugar para recomeçarem suas vidas; e a omissão ou interesses miúdos de políticos e autoridades imersos em suas preocupações eleitoreiras mais ou menos imediatas. À reboque de tudo isso vai a população de um município pobre, com infraestrutura precária, e que reage no vernáculo das polarizações que tomaram conta do país.

Por sua vez, as “soluções” propostas para a situação na fronteira de Roraima são usualmente desumanas e repetem o que há de pior na cena internacional, como a xenofobia e o racismo. Além disso, desconsideram uma série de tratados dos quais o país é signatário e que existem justamente para evitar a consolidação do caos e da barbárie. As ideias vão do fechamento da fronteira ao estabelecimento de cotas para imigrantes de diferentes países, passando pela criação de corredores “sanitários” e mecanismos eficientes de deportação. Isso sem falar no clássico apelo ao reforço do contingente militar na fronteira e no equacionamento entre imigração e segurança nacional.

Nada disso, porém, resolverá a fundamental contradição da autoimagem de uma nação que se descreve como receptiva e cordial, mas que segue autorizando o extermínio, a tortura, o massacre e as diversas formas de pilhagem, principalmente dos mais pobres. E onde muitos indivíduos foram convencidos de que os direitos humanos servem para defender bandidos. No caldeirão da intolerância pátria, o episódio da expulsão de pessoas indefesas e fragilizadas apenas reatualiza uma série de brutalidades cotidianas às quais os brasileiros estão mais ou menos expostos em função de seu pertencimento social e da cor de sua pele. O fato de o caso ter ocorrido agora em uma fronteira distante e pouco comunicada com os centros administrativo-financeiros nacionais não minimiza sua relação com nossos problemas e contradições fundamentais. Ao contrário, acaba por corroborar a conclusão de que a gramática da violência por aqui é a regra, apesar do sempre louvável espírito altruísta de muitos.

No caso dos venezuelanos, há questões práticas e urgentes a serem enfrentadas para evitar que episódios ainda mais trágicos aconteçam. Como alertaram Cyntia Sampaio e João Carlos Jaronchinski [em artigo para o portal El País Brasil], o Brasil precisa de uma estratégia que esteja imune a influências políticas e seja considerada fundamentalmente sobre a ótica dos direitos humanos. Além de alojamento, documentação e alimentação, é preciso que se amplie a capacidade de atendimento aos estrangeiros nas áreas de saúde e educação, mas também se considere a questão fundamental do emprego, e do deslocamento seguro e voluntário para cidades que ofereçam melhores oportunidades de trabalho. Discussões aprofundadas sobre a reorganização das políticas públicas para recepcionar imigrantes e refugiados estão na ordem do dia em diferentes cidades e países no mundo, e poderiam ser mais difundidas no Brasil.

No momento, tudo o que não precisamos é ecoar uma visão da fronteira associada à segurança e à perspectiva de militarização. O anúncio do envio de policiais da Força Nacional de Segurança Pública para o local aponta nessa direção. Se a manutenção de um ambiente pacífico na região é um preceito, as questões derivadas da chegada de venezuelanos em Roraima dificilmente se encerrarão com esse tipo de atitude emergencial. Apesar de o Brasil ter recebido até agora um número dez vezes menor de refugiados venezuelanos do que a vizinha Colômbia, episódios como o de Pacaraima revelam um fracasso hiperbólico das autoridades nacionais em lidar com a chegada de imigrantes e refugiados ao país.

Fonte: migramundo.com

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